Roma Antiga

Blog sobre a Roma Antiga: história, cultura, usos e costumes.

segunda-feira, junho 27, 2005

CONTO: "O Capricho de César" (VIII)

Saindo do Teatro, com as mãos amarradas atrás das costas, Caius e Quintus foram conduzidos através do Fórum pelos três pretorianos que os escoltavam. Dada a hora tardia – o sol encontrava já o seu ocaso -, não houve muita gente que assistisse à cena. Ainda assim, um ou dois curiosos que por ali circulavam não se coibiram de tecer algumas considerações. Um deles, um velhote com ar encarquilhado que aparentava ser banqueiro, a avaliar pelos rolos de papiros com números e registos contabilísticos que carregava entre os braços, desabafou:

- Mais dois equites(*) que César manda prender… Nós, cavaleiros, somos um alvo a abater para César!

Ouvindo este comentário, Caius dirigiu-lhe um olhar que não escondia um certo pânico. Que seria feito deles? Calígula era imprevisível. Poupar-lhes-ia a vida? Ou, pelo contrário, reservar-lhes-ia algum suplício atroz e desumano?

Os prisioneiros foram conduzidos até ao Palatino, onde se encontrava a Domus Tiberina, o palácio habitado pelos Césares. A residência imperial era um enorme complexo de edifícios, que compreendia os aposentos da primeira família de Roma e dos seus muitos servidores, bem como um pequeno aquartelamento de pretorianos encarregues de zelar pela segurança do Princeps. Caius e Quintus foram levados para este aquartelamento, situado nas traseiras do palácio, onde os enfiaram numa pequena cela húmida e escura.

Envoltos na penumbra, Caius e Quintus sentaram-se no frio chão lajeado, ainda com as mãos amarradas por trás das costas. O silêncio impôs-se entre os dois infelizes, quase tão denso como a escuridão que os envolvia. Caius apenas conseguia vislumbrar a silhueta do amigo.

Após alguns segundos, Quintus começou a chorar. O homem estava desesperado.

- Que será de nós? – perguntava Quintus insistentemente, entrecortando a fala com copiosas lágrimas.

- Calma. Ainda estamos vivos… ainda há esperança. – respondeu Caius, procurando esconder o seu próprio terror.

- O Princeps é louco... ainda recentemente me contaram histórias arrepiantes sobre ele...

- Por exemplo? - perguntou Caius, curioso.

- Por exemplo, esta: ele foi convidado para um casamento do filho de um consular. Gente da mais ilustre sociedade, portanto...

- Tal como o próprio Calígula... - interrompeu Caius, procurando cortar aquele ambiente de medo e ansiedade.

- Sim, tal como Calígula, gente da mais alta aristocracia. O imperador aceitou o convite com muito gosto, foi à boda e sentou-se na mesa dos noivos, mesmo em frente do jovem casal... E foi então que...

- Fez um brinde à felicidade dos noivos? - perguntou Caius, irónico.

- Não... numa altura em que o noivo, feliz da vida e orgulhoso da presença de César na boda, apertava a esposa contra si, o imperador olhou para ele muito sério e disse: "Tenha cuidado, não aperte tanto a minha esposa"...

Ouvindo isto, Caius não conseguiu reprimir o riso; apenas alguém com um sentido de humor muito apurado, embora cruel, se poderia lembrar de dizer uma coisa daquelas em pleno banquete nupcial. E Quintus acrescentou:

- De seguida, o malvado pegou na noiva e levou-a para casa! Imaginas certamente o escândalo que foi...

(Continua)

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(*) - Cavaleiros. Membros da Ordem Equestre, à qual pertenciam os homens de negócios da antiga Roma.

quinta-feira, junho 16, 2005

CONTO: “O capricho de César” (VII)

Nesse momento, enquanto a multidão dirigia estas e outras fervorosas aclamações ao seu príncipe, entrou no tribunal um jovem alto e de bela aparência. Era loiro, elegante e envergava uma túnica escarlate. Caius reconheceu-o como sendo Marco Lépido Mnester, o célebre actor de pantominas, conhecido por toda a Roma.

Ao vê-lo entrar no tribunal, Calígula esqueceu por completo a multidão que o aplaudia e voltou-se muita rapidamente para o actor, abraçando-o. Depois, em frente dos quinze mil espectadores que então enchiam o Teatro de Marcelo, teve a ousadia de o beijar na boca, ainda para mais de forma particularmente apaixonada.

A primeira reacção da populaça foi de clara estupefacção. Nunca antes, em setenta anos de principado, um imperador se havia entregue publicamente a tais liberdades. E foi então que, após alguns momentos de silêncio total, alguém gritou de entre os cavaleiros:

- Marido de todas as mulheres e mulher de todos os maridos!

Este insulto gerou a maior confusão no teatro. Os actores abandonaram o palco e correram rapidamente para os bastidores.

De um lado estavam os que insultavam e apupavam violentamente o imperador. Entre estes contava-se a maioria dos cavaleiros, pois Calígula havia granjeado muitas inimizades na ordem equestre, graças às numerosas execuções, desterros e confiscações que ordenara.

Mas o imperador tinha também os seus defensores, especialmente no seio da populaça. Os insultos e as trocas de argumentos rapidamente cederam lugar à violência generalizada; num ápice, começaram a chover cadeiras, pontapés e outros “mimos” de parte a parte. E aqueles que, como Caius e Quintus, tentavam permanecer neutrais na batalha, arriscavam-se a levar pancadas vindas das duas facções que se digladiavam.

Entretanto, Calígula ordenou a intervenção dos lictores e das coortes pretorianas. Os soldados entraram pelas vomitoria, armados com bastões de madeira, e começaram a distribuir cacetadas pela multidão enraivecida.

Enquanto tentava fugir por uma das saídas do teatro, Caius olhou para o camarote. Viu Calígula e os amigos rirem-se de forma entusiástica, enquanto admiravam aquela tremenda confusão. Quanto a Ausonius, parecia petrificado. “O sacana diverte-se com a confusão que criou”, pensou Caius.

Ele e Quintus tentaram fazer caminho entre a multidão que procurava fugir do teatro. Viam-se ali pessoas de todas as idades e condições sociais, algumas cobertas de sangue e outras com as vestes rasgadas. Ouviam-se gritos, choros e o estrépito surdo das pauladas desferidas pelos pretorianos.

Quando finalmente chegaram junto da saída, Caius e Quintus viram a fuga impedida por três guardas pretorianos, armados com gládios. Caius viu um deles, aparentemente o mais graduado, erguer calmamente o dedo na sua direcção, enquanto dizia aos outros:

- Prendam esses dois aí. Devemos levar a César dois cavaleiros.

Obedecendo à ordem, os soldados amarraram Caius e Quintus, a quem nada valeram as tentativas de resistência e os protestos de inocência.

(Continua)

quarta-feira, junho 15, 2005

CONTO: "O capricho de César" (VI)

Entretanto, um homem franzino subiu ao palco, interrompendo o espectáculo. Devia tratar-se de um liberto de Ausonius, pensou Caius. O liberto colocou-se entre os dois actores, com os braços erguidos, como se ao mesmo tempo que pedia desculpa ao público pela interrupção, pedisse também que se fizesse silêncio.

Demorou alguns segundos até que o liberto, meio assustado, conseguisse captar a atenção dos espectadores. E quando finalmente se impôs algum silêncio, o homem levantou a voz e disse:

- Quirites (1)! Temos entre nós o mais ilustre dos visitantes! Caio César, Cônsul, Imperador e Pai da Pátria, fez questão de partilhar dos vossos divertimentos!

Neste momento, Calígula emprestou à face uma expressão de certa bonomia, levantou-se da cadeira e saudou a multidão, com o braço direito levantado. Entre os espectadores, por seu turno, houve quem se erguesse e gritasse a plenos pulmões:

- Viva o nosso néné! Viva o nosso chorão(2)! Viva o filho de Germânico!

(Continua)

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(1) - Cidadãos.

(2) - "Néné" e "Chorão" eram algumas expressões utilizadas pela plebe romana para designar carinhosamente o jovem imperador.

terça-feira, junho 14, 2005

CONTO: "O Capricho de César" (V)

Entretanto, a viagem de Caius prosseguia sob o sol abrasador do deserto. Após várias horas de caminhada, a caravana encontrou um oásis. Era uma pequena nascente rodeada de alguma vegetação, o que oferecia um notável contraste com toda aquela imensidão de areias escaldantes. Depois de se assegurar que não se tratava de uma qualquer miragem, o chefe dos caravaneiros apressou-se a ordenar uma paragem para descanso. Dorido, Caius saltou da sua montada e aproximou-se da água fresca, no que foi seguido pelos númidas e pelos animais.

Com a sede saciada, sentou-se à sombra de uma palmeira. Pegou num pedaço de pão e num outro de carne seca, e enquanto se alimentava continuou a recordar aquela tarde passada no Teatro de Marcelo.

O homem que naquela tarde entrara no tribunal acompanhado de guardas e escravos era Caio César, o Princeps, o Primeiro Cidadão de Roma. Conhecido pela alcunha de Calígula (1), que devia à infância passada nos acampamentos das legiões de seu pai, sucedera a seu tio-avô Tibério no cargo de mais alto magistrado do Estado.

Juntamente com o imperador, ricamente vestidos, vinham três dos seus amigos, membros de famílias tão distintas quão influentes. Muitas destas velhas famílias patrícias ombreavam com os Césares em termos de antiguidade e prestígio. Os Emílios Lépidos, os Cornélios Cipiões ou os Pompeus, por exemplo, viam os Césares como seus iguais e não como superiores. Isso fazia com que os imperadores encarassem estes velhos clãs republicanos com muito receio e desconfiança.

Calígula correspondeu friamente à saudação do cavaleiro Ausonius, que se encontrava visivelmente atrapalhado com tão inesperada visita e, sem grandes cerimónias, sentou-se na sua luxuosa cadeira. Os seus amigos sentaram-se em redor, em cadeiras trazidas pelos criados, e o nervoso Ausonius voltou a sentar-se na sua, agora muito mais atento ao espectáculo.

Calígula disse um qualquer gracejo que mereceu as gargalhadas entusiásticas dos seus companheiros. Mas quando Ausonius se juntou ao coro de risos, Calígula lançou-lhe um olhar furioso. Assustado e sem graça, Ausonius parou de rir e virou os olhos para o palco. A Caius parecia que o imperador queria com isso dizer que nem todos se podiam rir dos gracejos de César. Ou quereria fazer troça de Ausonius?

C.I.P.

(Continua)

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(1) - "Caligula" significa "pequena bota". Foram os legionários de seu pai que inventaram esta alcunha, como forma carinhosa de o tratar.

Das guerras civis
Acabei de ler este fim-de-semana o volume da guerra civil de César dedicado à campanha da Ilíria, com as batalhas que ficaram conhecidas na história (pois César não lhes dá esses nomes) de Lesnikia, Dirachium e Farsália.
Ao contrário de muitos outros autores latinos que tem uma escrita pesada, cheia de artifícios de linguagem procurando impressionar o autor, César (“ele” como se designa) tinha uma escrita clara e fácil, diria mesmo jornalística. Faz a sua apologia ao descrever os seus actos (e não por se elogiar directamente), o inverso se passando com os adversários, que são criticados pelas acções cobardes ou vis que cometem. É assim uma bela obra de propaganda, cometendo algumas imprecisões voluntárias (necessidades políticas o exigiam) ou pelo distanciamento do tempo.
A campanha como é descrita, mostra a elevada complexidade das operações e da estratégia romana. Pompeu fugindo de Itália com os seus exércitos desembarcara na Ilíria e dirigira-se para o interior; “ele” foi em sua perseguição, mas tendo Pompeu uma maior marinha conseguiu impedir o embarque da maioria das suas tropas; ocupando então os Cesarianos a costa, os Pompeianos o mar e o interior, ambos tinham dificuldades de abastecimento que os levou a querer ganhar tempo. Foram construídas diversas fortificações e travados combates menores para ocupação de pontos estratégicos. Percebe-se que Pompeu não queria travar uma batalha decisiva contra “ele” a quem devia reconhecer um génio táctico excepcional que dera provas em várias ocasiões. Daí as tentativas de cortar os abastecimentos e reforços ao adversário, enquanto ele próprio se reforçava o que lhe poderia vencer sem travar combates, vencendo pela logística (que sempre fora o seu forte). “Ele” pelo contrário, tendo um exército inferior (mas provavelmente não tão inferior de proporção de 1 para 2 como diz) constituído por veteranos, tinha o interesse em arrumar a situação. Quase que aniquilado em Lesnikia num ataque nocturno (mostrando que não era infalível), acaba por resolver a situação em Farsália. O plano de Pompeu que implicava o esmagamento das alas Cesarianas graças à superioridade da cavalaria era bom à partida, mas previsível. “Ele” criou uma nova unidade de reserva de infantaria que sustiveram o ataque e acabou por aplicar o plano de Pompeu contra este. Pompeu sem tempo de manobrar as imensas reservas de tropas que possuía, fugiu considerando que desde que os líderes sobrevivessem, o destino dos exércitos era irrelevante. Cometeu o erro de pedir o asilo no Egipto onde acabou assassinado.”Ele” seguiu-o e passou os meses seguintes engalfinhado com os alexandrinos, operações que são contadas noutro livro.
Q.F.M.

segunda-feira, junho 13, 2005

BREVEMENTE... Devido aos meus afazeres académicos (exames...), não pude ainda postar mais um capítulo de "O Capricho de César". Fá-lo-ei brevemente.

quinta-feira, junho 09, 2005

CONTO: "O Capricho de César" (IV)

De facto, as risadas eram gerais. O público delirava com a peça, à medida que os actores desfiavam o texto de Plauto.

Com capacidade para quinze mil espectadores, o Teatro fora construído pelo Divino Augusto, que dedicou o edifício ao seu jovem sobrinho Marcelo. Caius recordava-se do pai lhe contar que aquando das cerimónias de inauguração do Teatro de Marcelo, cerca de cinquenta anos antes, sucedera algo insólito; de um momento para outro, as juntas da cadeira curul do Princeps desfizeram-se, o que fez com que Augusto tombasse de costas. Alguns viram no incidente um mau presságio, quer para o príncipe, quer para a novel estrutura cénica. Mas aprouve aos deuses que tanto Augusto como o Teatro de Marcelo estivessem destinados a uma longa vida.

Depois de reorganizar a República, a cujos negócios se entregou desde a mais tenra idade e sempre com a maior argúcia, o Divino Augusto propôs-se a repor a ordem e a disciplina nos espectáculos públicos. Incomodara-o sobremaneira o caso de um senador a quem, na cidade costeira de Puteolos, ninguém dera passagem entre a assistência de um espectáculo. Daí que o princeps tenha determinado que, doravante e em qualquer tipo de espectáculo público, a primeira fila de lugares seria sempre reservada para os senadores. Ademais, proibiu as mulheres de se sentarem entre os homens e de ocuparem assentos próximos do palco. Tão rigoroso quão atento aos pormenores, reservou lugares específicos para os legionários, para as Virgens Vestais e até para os jovens que ainda usassem pretexta. Volvidos vinte e cinco anos após a morte de Augusto, estas e outras regras mantinham a sua vigência.

Enquanto cavaleiros romanos, Cais e Quintus ocupavam dois confortáveis assentos no seio da ima cavea, a parte da plateia mais próxima do palco. Já algo aborrecido com o espectáculo, Caius rodou o pescoço de modo a lançar um olhar pelo imponente edifício; não se via um único lugar livre. Pelo contrário, muitas pessoas assistiam a pé à peça de Plauto. E olhando para as vomitoria, as várias entradas sob as bancadas através das quais as pessoas acediam ao Teatro, Caius constatou que não cessava o fluxo de novos espectadores. “Qualquer dia dar-se-á uma tragédia, como aconteceu em Fidenas, quando o anfiteatro ruiu”, pensou.

De súbito, estando Caius entretido nestas e outras observações, reparou que havia alguma agitação no tribunal, o camarote especial reservado para as altas individualidades. O patrono do espectáculo, um rico mercador chamado Tulius Ausonius, fora despertado do seu indisfarçável sono por um descarado liberto que tivera a ousadia de abruptamente interromper a sua sesta; era para todos evidente que se Ausonius financiava o espectáculo não seria por amor desinteressado à arte cénica, a avaliar pela forma como adormecia durante as actuações.

Usando um barrete frígio vermelho, símbolo da sua condição, mas envergando luxuosas vestes cortesãs, o liberto falou ao cavaleiro Ausonius com uma certa altivez. E este, que a princípio acolhera o intruso com alguma indignação, parecia adoptar uma postura mais dócil à medida que o liberto lhe comunicava a razão da sua presença.

Caius assistia à cena do seu lugar na ima cavea, curioso a respeito do que se passaria. Ausonius levantou-se da sua cadeira acolchoada, aprimorou a toga que envergava e, com os dedos esticados, tentou pentear os raros cabelos que lhe restavam. Pouco depois, dois guardas pretorianos entraram no tribunal, precedendo dois escravos que transportavam uma luxuosa cadeira de estilo oriental. Atrás dos servos vinha um indivíduo de estatura mediana, tez pálida e cabelos loiros escovados para a frente, sobre a testa.

(Continua)

quarta-feira, junho 08, 2005

CONTO: "O Capricho de César" (III)

Estoicamente, a caravana caminhava entre as dunas ardentes, da mesma forma destemida e ousada que uma nave avança entre as turbulentas ondas do oceano. E após tantas horas de viagem, Caius já se habituara ao dorso do animal que o transportava, embora permanecesse algo dorido.

Não obstante o facto de não compreender a sua língua, Caius notou que os seus companheiros de viagem contavam piadas entre si – ou pelo menos assim parecia, pela forma como riam. Ele, todavia, permanecia em silêncio, pensando no passado…

Cerca de um mês antes, Caius fora assistir a um espectáculo teatral em Roma, no chamado teatro de Pompeu. Em cena estava “O Soldado Fanfarrão”, de Plauto. A assistência delirava com a farsa; entre os espectadores encontrava-se Caius, que então comentava com um seu amigo, Quintus Nonius, que a plebe romana adorava o estilo sarcástico e contundentemente crítico de Titus Maccius (*). O amigo acenou com a cabeça em sinal de concordância, asseverando que Plauto e Terêncio estavam ao nível dos melhores dramaturgos gregos. E acrescentou, não sem orgulho, que se era verdade que Roma não tinha grandes filósofos, também o era que se podia orgulhar dos seus excelentes homens de letras!

Caius concordou, rematando a conversa com um gesto de aprovação. O espectáculo estava no auge. Sentado bem perto de Caius e Quintus encontrava-se um homem gordo, dos seus cinquenta anos, que se fazia notar pelas suas gargalhadas estridentes e algo despropositadas. Mas não era o único.

(Continua)

C.I.P.

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(*) - Tito Mácio Plauto, Comediógrafo romano (259-184 aC).

CONTO: "O Capricho de César" (II)

Na manhã seguinte, bem cedo, Caius acordou com o chamamento do chefe dos caravaneiros. Ainda ensonado e entorpecido pela dureza do leito de rocha em que dormira, dirigiu-se até junto do riacho. Lavou a face e, por breves instantes, mirou o seu reflexo nas tépidas águas do ribeiro.

Viu dois meigos olhos castanhos, ainda semi-adormecidos. Viu também o seu despenteado cabelo negro, com os caracóis escorregando-lhe timidamente para a testa alta. “Ora aí estás tu, nem feio nem belo, nem vulgar nem excepcional”, pensou para consigo, admirando o seu próprio reflexo.

Duas levas de água para a face despertaram-no do seu torpor. De seguida, banhou-se calmamente nas mornas águas do riacho, não se deixando pressionar pela pressa dos caravaneiros em partir antes do sol se tornar demasiado quente. Finda a ablação, juntou-se aos caravaneiros que, ali perto, tomavam a refeição da manhã.

Enquanto mastigava um pedaço de pão seco, Caius atentou calmamente nos modos e nos jeitos dos seus companheiros de viagem. Eram todos númidas, habituados às agruras da vida no deserto, à secura e ao calor abrasador, bem como às frias noites que enregelavam os ossos e feriam de morte os mais incautos.

Contando com Caius, a caravana era composta por sete homens e dez dromedários. Do alto das suas bossas, as bestas carregavam os homens e os seus pertences. Não seria exagero dizer que os animais carregavam também a responsabilidade pelas vidas dos seus amos, ali perdidos naquele mar de areias escaldantes e rochas inóspitas.

Terminada a refeição da manhã, os homens desmontaram o acampamento e carregaram os animais. Um númida ajudou Caius a montar o seu dromedário, e a caravana pôs-se a caminho.

(Continua)

C.I.P.

QUEM CONTA UM CONTO... Dou hoje início à publicação de um conto da minha autoria, intitulado "O Capricho de César". Passa-se no ano 39 da nossa Era e publicá-lo-ei igualmente no "Respublica". A publicação será feita em várias partes. Vejam o que acham e deixem os vossos comentários! Aceitam-se e desejam-se críticas construtivas!

O Capricho de César (I)

Ruminando vagarosamente as ervas secas que devorara, o animal recebia a compensação por um longo dia entre as duas do deserto. Um númida alto, de tez escura e barba rala disse-lhe qualquer coisa no seu estranho dialecto – o do númida, não o do dromedário -, que fez com que o animal mudasse de poiso e fosse ruminar para alguns passos adiante, junto da água fresca do oásis e sob a protecção dos longos ramos de uma palmeira seca e encarquilhada.

Caius olhava fixamente a linha do horizonte, onde o quente e rubro sol do deserto encontrava o seu ocaso nas montanhas do Atlas. Um dos caravaneiros, um homenzinho de pele morena e ar dócil, chamou-o educadamente para junto do fogo, acrescentando num grego sofrível que as noites do deserto eram muito frias e que convinha agasalhar-se.

“Que raio de clima o desta região”, pensou Caius para consigo, estranhando aqueles dias de calor abrasador a par de gélidas noites. Tão diferente que era do clima da sua Roma natal, onde apesar das cálidas tardes de Verão, existiam mil e uma fontes onde os cidadãos se podiam refrescar. E, claro, as dezenas de banhos públicos onde os filhos de Quirino podiam ocupar as suas longas horas de ociosidade.

E a noite romana? Que doçura! Com aquela brisa suave! Na sua casa no Esquilino, Caius costumava passar as noites de Verão na varanda, aproveitando a fresca brisa que então soprava dos lados de Óstia. Deitado na sua rede, com as pernas cruzadas e as mãos pousadas sobre o ventre, Caius desfrutava de todos os luxos e comodidades a que um cavaleiro romano tinha direito.

Depois de uma parca refeição que mal lhe aconchegou o estômago, deitou-se numa cama improvisada junto da fogueira e adormeceu rapidamente, envolto em recordações da sua Roma e da vida que provavelmente não voltaria a conhecer. Que seria agora dele, vítima das intrigas dos invejosos, dos caprichos dos poderosos e da sua própria insensatez?

(Continua)

C.I.P.

Os cônsules
Quando o rei Tarquínio o soberbo foi expulso, foi instaurada a república. O senado romano decidiu substituir os reis por cônsules (que detinham boa parte dos atributos e poderes dos reis). Na base da sua autoridade estava a existência do imperium (o conceito é um pouco difícil de explicar, digamos que se pode traduzir vagamente como poder). Comandavam os exércitos, propunham leis ao senado e tinham poderes judiciais; os anos eram nomeados pelos cônsules. Mas tinham sérias restrições para não se tornarem efectivamente reis. Seriam em número de 2, da classe dos patrícios e teriam mandatos anuais não renováveis imediatamente; a idade legal era de 40 anos. O outro cônsul podia vetar medidas do colega. Os plebeus na sua luta pela igualdade não podiam renunciar a cargo tão importante e oficialmente em 367 AC. conseguiram a possibilidade de eleição. As necessidades administrativas levaram à criação dos procônsules, antigos cônsules que recebiam o comando de tropas ou territórios. Deste modo se obtinha um equilibrio entre um poder executivo nas mãos de 2 líderes e o senado.
Enquanto Roma era uma cidade mediana com aliados o sistema funcionou. Mas a II guerra púnica estilhaçou tudo. Numa guerra que durou décadas, não se podia confiar a campanha a pessoas eleitas sem experiência; as numerosas derrotas que antecederam o desastre de Canae, mostrou que outro sistema tinha de ser escolhido: quando se arranjava um bom chefe não se podia substituir. Vários expedientes foram tentados: eleição abaixo da idade legal, entrega do proconsulado e prorrogação do mandato (tudo sérios entorses à legalidade), até que a plebe decidiu atribuir a Scipião um comando de tropas sem limitações até à conclusão da guerra.
A emergência de figuras carismáticas, daria outro golpe à constituição: generais bem sucedidos como Sila ou Mário embora candidatando-se ao consulado, valiam-se das suas legiões para o exercício do poder. Com os triunviratos, nem sequer a ilusão se mantinha da importância dos cônsules.
Com os imperadores, a situação evolui. O imperador na sua acumulação de cargos, reserva normalmente para si um dos consulados, e outro para parentes, herdeiros, ou favoritos (mesmo que posteriormente executados). E temos o caso de Calígula que teria nomeado o seu cavalo. Embora desprovido de poder, o consulado mantinha-se uma instituição de imenso prestigio.
No final do império a sua principal função é organizar os jogos e presidir ao senado; no entanto os cônsules da velha república devem-se ter revolvido nos seus túmulos, ao ser escolhido um eunuco (Eutrópio) para o cargo. Com a divisão do império, é nomeado 1 cônsul por metade do império. O consulado sobreviveu mesmo ao império do ocidente e os reis ostrogodos mantém as nomeações: vemos figuras de prestígio como Boécio e Cassiodoro no ocidente (o último cônsul de Roma foi Decius Paulinus em 534) e Belisário no oriente. Em Bizâncio, o último particular a ocupar o cargo foi um Flavius Basilius; depois disso os imperadores reservaram para sí o cargo que foi extinto 2 séculos depois.

sexta-feira, junho 03, 2005

Os cartagineses
Povo de origem semita (logo, não indo-europeu). Cartago foi fundada provavelmente por fenícios de Tiro no séc. IX, no norte de Africa. Os cartagineses aproveitaram a ocupação da sua metrópole para se lhe substituir. Submeteram as outras colónias fenícias, cobrando tributos e homens, ao mesmo tempo que fundaram novas cidades: criaram assim um império marítimo que se estendia da Sicília à península ibérica e costa ocidental africana. Rivalizaram com Siracusa e as outras cidades gregas na posse da Sicília, sem nunca conseguir vencer (apesar da superioridade dos meios). A partir do séc. III A.C. entram em conflito com Roma nas célebres 3 guerras púnicas que acabaram depois de variada sorte, na destruição total da cidade de Cartago, após uma resistência feroz e suicida. Quem não ouviu a célebre expressão “Delenga Cartago est” (é preciso destruir Cartago) por Catão?
A população de origem fenícia tinha no topo uma aristocracia que se dedicava ao comércio. Abaixo estavam os cidadãos que dedicando-se a várias actividades e possuíam ainda um rendimento que lhes assegurava um certo desafogo (era um regime censitário) e a manutenção de alguns direitos políticos. A massa dos pobres e camponeses líbios não possuía quaisquer direitos políticos.
Do ponto de vista político, existiam 2 magistrados de poderes reduzidos acompanhados de uma espécie de senado em que as famílias aristocráticas tinham representação (e com poucos poderes também). Abaixo estava a assembleia dos cidadãos (surpresa, também de poderes reduzidos). Quem possuía poder total era o conselho dos 104, um órgão eleito que controlava a política, espionava e mandava executar quem suspeitassem de conspirar contra o estado ou generais derrotados.
A religião fez correr muita tinta: negado durante anos, acabou por se confirmar aquilo que os romanos acusavam os cartagineses, de que estes sacrificavam crianças (de preferência escravas, embora em anos difíceis os nobres também fossem entregues para apaziguar os deuses). Tinham assim as divindades cananeias (Astarte, Bahal).
Tiveram uma série de grandes generais, e um dos 5 mais considerados de sempre: Aníbal. Esmagou os romanos em várias batalhas embora indiscutivelmente Canae fosse a sua obra-prima (os oficiais prussianos estudavam ainda na primeira metade do séc. XX essa batalha como modelo de manobra e planeamento). Recrutavam mercenários por todo o lado do mediterrâneo desde gregos, celtas, iberos, númidas (estes do norte de Africa) com um núcleo de infantaria líbia e por vezes mesmo cartagineses. Os filhos da nobreza eram muitas vezes integrados numa unidade chamada o batalhão sagrado (de pouco mais de 1000 homens) que era usada com muita parcimónia, dado o risco elevado de morrerem em combate.
Q.F.M.