Roma Antiga

Blog sobre a Roma Antiga: história, cultura, usos e costumes.

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

ESTE BLOG ESTÁ AINDA EM FASE EXPERIMENTAL. Os textos que aqui podem ler foram já publicados anteriormente no Respublica. Se tudo correr como previsto, este blog estará pronto no próximo dia 23. Até lá!




O CASTIGO DOS PARRICIDAS A sociedade romana era, como sabemos, de molde patriarcal. O Pater Familias era detentor de poder de vida ou de morte sobre os membros não emancipados da sua família: esposas, filhos menores, filhas solteiras, mães viúvas e outras pessoas que lhe fossem confiadas (filhos adoptivos, por exemplo). A lei consagrava o respeito pela figura paterna, no que influíam aspectos religiosos importantes. Para os Romanos, o parricídio era o crime mais horrendo que alguém podia cometer: mais que uma ofensa às leis dos homens, era considerado um ultraje aos deuses. Por exemplo, é curioso verificar que mesmo os piores facínoras da história romana respeitaram a vida dos respectivos pais (dos pais, não das mães; Nero, por exemplo, matou Agripina, ao que dizem para poder contemplar as entranhas que o conceberam...). Ao contrário dos soberanos persas, partos, egípcios ou gregos, nunca um imperador romano ascendeu ao trono assassinando o pai. Houve rumores, é certo, a respeito de imperadores como Domiciano ou Caracala, por exemplo, mas nada ficou provado.

O castigo para os parricidas era exemplar, tendo sido estipulado nos primórdios da república romana (ou mesmo no tempo da monarquia). O castigo do parricida destinava-se a exprimir a ira do pai Júpiter contra o filho que ousa assassinar aquele que transporta a semente que lhe deu vida. Era, por isso, uma pena estipulada por sacerdotes e não por legisladores.

Mas que castigo era esse? Era um suplício particularmente cruel, mesmo para os padrões da época. A lei estipulava o seguinte: imediatamente após a sua condenação pelo tribunal, o parricida era conduzido para fora dos muros da cidade, para o Campo de Marte. A população era depois convocada para assistir ao suplício, através do toque de trombetas por toda a Roma.

Eram colocados dois pedestais à altura dos joelhos do parricida; este, já completamente despido, punha um pé em cada pedestal, ficando acocorado e com as mãos presas atrás das costas. Deste modo, todas as partes do seu corpo nú ficavam acessíveis aos carrascos, que o chicoteavam com látegos cheios de nós, até o sangue jorrar como água... significava isto que o sangue que lhe corria do corpo era o mesmo que correu nas veias do seu pai e lhe deu a vida. Ao vê-lo jorrar, o parricida compreendia o desperdício que o seu crime produziu... e o sacrilégio que era ofender a origem da própria vida.

Quanto os carrascos terminavam o seu trabalho – ou seja, quando todo o corpo do parricida estivesse completamente dilacerado – o condenado era obrigado a rastejar para dentro de um saco de peles estreitamente cozidas, de forma a não deixar entrar água nem ar. Se recusasse, os tormentos recomeçariam. E como o saco estava colocado a vários metros dos pedestais, a populaça tinha oportunidade de insultar o parricida e de o cobrir com excrementos enquanto ele se arrastava.

Uma vez dentro do saco, o parricida estava assim devolvido ao ventre materno, tornado não nado, não nascido. Eram depois colocados no saco quatro animais, que deveriam continuar a atormentar o condenado: um galo e um cão, símbolos protectores do lar, que falharam na missão de proteger o pater familias; uma serpente, princípio masculino que tanto pode dar a vida como a morte; e, finalmente, um macaco, a mais cruel paródia de humanidade feita pelos deuses.

O saco era depois hermeticamente fechado e lançado ao Tibre; vigilantes eram colocados ao longo do rio, desde Roma até Óstia, de modo a que o saco não desse à margem. Uma vez no mar alto, o supliciado era entregue de Júpiter a Neptuno, e deste último a Plutão. Estava para além do cuidado e da memória, longe da vida que desprezara e ultrajara. A morte, que tanto podia demorar apenas alguns minutos como várias semanas, seria agora uma libertação.

C.J.F.




PERSONAGENS (II) Poucos imperadores romanos foram tão odiados como Maximino, o Trácio (Caius Iulius Verus Maximinus, chamado Thrax).

De origem extremamente humilde, Maximino nasceu nas montanhas da Trácia, por volta do ano 173. Os autores da época referem que nascera numa família de camponeses, e que fora pastor em criança. No entanto, a sua extraordinária robustez e resistência física (tinha mais de dois metros de altura!) cedo o habilitaram para a carreira das armas, que abraçou ainda adolescente.

O célebre historiador inglês Sir Edward Gibbon, no seu conhecido "Declínio e Queda do Império Romano", fez eco de uma velha tradição a respeito da entrada do jovem Maximino nas legiões. Escreveu ele que, aquando de uma visita de Septímio Severo à Trácia, Maximino teria corrido durante horas atrás do carro do imperador. Este, impressionado com a extraordinária resistência do jovem trácio, autorizou a sua admissão no exército. E anos mais tarde, quando Severo levou a cabo a sua guerra contra os Persas, Maximino era já um respeitado oficial a quem eram confiadas importantes responsabilidades.

Anos mais tarde, em 235, durante a campanha do jovem imperador Alexandre Severo na Germânia, Maximino era já general. Fora-lhe confiada a tarefa de recrutar e treinar os reforços para as legiões, e foi nessa vantajosa posição que o trácio decidiu derrubar o débil Alexandre. Inesperadamente, um grupo de oficiais revoltou-se contra o imperador, reclamando a púrpura imperial para Maximino. E este, que a princípio se mostrou relutante em aceitar a dignidade imperial (para manter as aparências?), depressa aderiu à revolta. Quanto ao jovem Alexandre, foi brutalmente assassinado pelos soldados na sua tenda, juntamente com a sua mãe. O choro e as súplicas do pobre coitado não comoveram os algozes.

Quando assumiu o poder, Maximino instaurou um regime de terror. Mandou executar a maioria dos conselheiros, amigos e parentes de Alexandre, confiscou terras e propriedades, tirou poderes ao Senado, etc. Tudo isto contribuiu para que fosse visto como um bárbaro feroz (e que, de facto, era!), inimigo da tradição e das leis romanas. Maximino foi o primeiro "imperador soldado", pois antes dele todos os césares eram oriundos da classe senatorial. Era, por isso, um inimigo do senado e das velhas famílias da aristocracia tradicional.

Em 238, porém, estalou uma revolta na província de África, liderada pelos patrícios Gordianos, alegados descendentes de Caio Graco e Marco António. Ou seja, da mais fina flor da aristocracia romana. A revolta de África foi rapidamente esmagada por um dos lugares-tenentes de Maximino, mas o Senado, que havia atribuído a púrpura aos Gordianos e que estava ciente do cruel castigo que o esperava, nomeou dois novos imperadores, Pupieno e Balbino.

Maximino depressa marchou para Itália, mas as forças do Senado travaram o seu avanço em Aquileia. E após o assédio infrutífero desta fortaleza, sem provisões e vendo que todo o Império aderira à revolta, os soldados acabaram por assassinar Maximino e o seu filho, reconhecendo a autoridade do Senado.

É verdade que Maximino cometeu sacrilégios e crueldades horrendas. Mas outros as cometeram antes. Sem dúvida que o facto de ser meio bárbaro e de origem extremamente humilde contribuiu muito para a imagem que os autores da época nos legaram.

C.J.F.




PERSONAGENS (I) poucas figuras na história romana foram tão controversas como Sila (Lucius Cornelius Sulla, 138 a 78 a.C.). Amado por alguns, odiado por muitos e temido por todos, Sila era senhor de uma personalidade extremamente contraditória, sendo capaz das maiores crueldades mas também de gestos da maior liberalidade e generosidade.

Nascido num ramo empobrecido da gens Cornelia, um dos mais ilustres clãs patrícios, o jovem Sila viu-se impedido pela miséria de ascender os degraus do Cursus Honorum. Cresceu e foi educado entre as classes mais baixas da sociedade romana, vivendo entre actores, prostitutas e agiotas. Teve uma existência miserável até aos trinta anos, altura em que recebeu duas heranças que lhe possibilitaram inscrever-se no censo senatorial. Este enriquecimento repentino não deixou de levantar dúvidas entre o meio político romano, pelo que surgiram boatos atribuindo origem criminosa à súbita riqueza do jovem Sila. Diziam as más línguas que ele teria assassinado as suas duas amantes – a própria madrasta, viúva do seu pai, e uma actriz grega com quem manteria uma relação – para lhes ficar com os bens. De qualquer modo, e não obstante este ingresso tardio no mundo da política, Sila cedo deu mostras de grande competência e habilidade.

Mas a sua oportunidade de ouro surgiu quando Caio Mário, comandante da guerra contra Jugurta, o escolheu para Quaestor do seu exército. Jugurta, que se apossara do trono da Numídia, continuava a resistir às legiões romanas que o Senado enviara contra si. Não obstante as importantes vitórias alcançadas por Mário – um dos melhores generais de todos os tempos - o astuto e brilhante rei númida dava mostras de grande capacidade de resistência. Mas Sila resolveria o assunto subornando elementos próximos de Jugurta, que assim foi capturado pela traição. A guerra terminou pouco depois, mas Mário nunca perdoou a Sila o facto de este lhe ter roubado a glória. Tal facto estaria, aliás, na origem dos posteriores desentendimentos entre os dois.

Nos anos que se seguiram, Sila afastou-se cada vez mais de Mário e aproximou-se dos boni (ou optimates), a facção conservadora do Senado. E, embora lentamente, ascendeu todos os degraus do Cursus Honorum. Quando em 89 a.C. despoletou a chamada Guerra dos Aliados, Sila conseguiu um comando no teatro de operações do Sul, onde agiu de forma extremamente eficaz. Reprimiu cruelmente as cidades rebeldes – em Nola, por exemplo, mandou degolar todos os indivíduos de sexo masculino – e esmagou os exércitos samnitas. Quando a guerra terminou, o caminho para o consulado estava finalmente livre.

Cônsul aos 50 anos (oito anos mais velho que a idade considerada “ideal”), Sila implementou leis que reforçavam o poder do Senado, em detrimento dos Equites (cavaleiros). Entretanto, o Senado incumbiu-o da guerra contra Mitrídates do Ponto, que invadira a Província Romana da Ásia; Sila preparou um exército e partiu para o Sul de Itália, de onde embarcaria para o Oriente. Mas notícias de Roma surpreenderam-no: Caio Mário, o velho general, conseguira que a Assembleia do Povo lhe atribuísse o comando da guerra, retirando-o a Sila. Foi então que este tomou um decisão crucial: marchar sobre Roma com o seu exército. Foi o primeiro a fazê-lo, abrindo um precedente perigosíssimo. E, com efeito, muitos o fariam daí em diante.

Surpreendidos pela decisão de Sila, Mário e os seus partidários fugiram da Urbs. Sila impôs a ditadura, mandando prender ou executar os principais líderes da facção de Mário, os chamados populares. Embarcou finalmente para a Grécia, pensando que a situação não se alteraria. Mas enganava-se: Mário regressou do exílio, com um exército de escravos e gladiadores, impondo o terror em Roma. O velho general - outrora chamado “o Terceiro Fundador de Roma”, pelas suas vitórias sobre os Cimbros e os Teutões – estava completamente louco. Centenas de pessoas foram chacinadas, entre as quais muitos senadores. O septuagenário Mário acabaria por morrer, vítima de um derrame cerebral, no décimo terceiro dia do seu sétimo consulado – um record até à altura – mas os marianistas (Sertório, Cina, etc), continuaram no poder até ao regresso de Sila, em 83 a.C.. E então o terror foi ainda pior: Sila retomou o poder pelas armas, mandando executar todos os opositores, incluindo o filho de Mário e outros líderes populares. Decretou depois milhares de proscrições, especialmente entre a classe equestre, de modo a poder financiar os cofres do estado. Os bens dos proscritos eram vendidos em hasta pública, mas claro que nesses leilões apenas licitavam os homens de Sila, e pelo mais baixo preço possível.

De acordo com Plutarco (“Vida de Sila”), no auge da matança um grupo de jovens senadores interpelou o ditador: "We are not asking you" he said "to pardon those whom you have decided to kill; all we ask is that you should free from suspense those whom you have decided not to kill". [versão inglesa]

Depois de implementar um conjunto de leis que reforçavam o poder do Senado e neutralizavam os Tribunos da Plebe e as assembleias (leis Cornélias), Sila acabou por abandonar a ditadura, no ano 79 a.C.. Retirou-se para uma villa da Campânia, onde viveu o resto dos seus dias numa existência dissoluta. Escreveu as suas memórias – em que descrevia a sua vida como uma longa sucessão de êxitos próprios de um “favorito de Fortuna” – e entregou-se a todo o tipo de vícios que sempre ocultara do público. Os milhares de veteranos que estrategicamente distribuíra pelo Império tranquilizavam-no quanto a retirar-se e viver em sossego. Contudo, o seu retiro durou pouco, pois no ano seguinte morria corroído por vermes.

Podemos ainda recordar um breve episódio a respeito deste ditador: quando Sila tomou o poder, o jovem Júlio César, sobrinho de Mário (que era casado com a sua tia Júlia), recusou-se a divorciar-se de Cornélia Cina, filha de um dos maiores inimigos de Sila. Por esse motivo – e pela altivez de César, que o irritava – Sila mandou matar o jovem patrício. No entanto, este conseguiu fugir, escondendo-se nas montanhas. Doente e acossado pelos sicários de Sila, a sua morte parecia iminente. Foi então que um grupo de patrícios – entre os quais vários amigos do ditador – intercedeu pela vida de César junto de Sila. Este acabaria por ceder após vários rogos e insistências, mas não sem antes ter proferido uma frase profética: “cuidado com o jovem César, porque vejo nele mil Mários”. E, com efeito, não se enganava.

Ironicamente, as leis de Sila acabariam por ser revogadas mais tarde por dois dos seus lugares tenentes, Pompeu e Crasso. Plutarco escreveu o seguinte a respeito do monumento em sua honra, no Campo de Marte: “His monument is in the Field of Mars and they say that the inscription on it is one that he wrote for it himself. The substance of it is that he had not been outdone by any of his friends in doing good or by any of his enemies in doing harm”. [versão inglesa]

C.J.F.